Sobre ser bicha e umbandista

Meu primeiro contato com a Umbanda foi através de um livreto de pontos cantados da minha amiga. Fiquei intrigado, perguntei o que eram aquelas canções, minha amiga ficou me olhando por alguns instantes, olhou pra mãe dela em busca de autorização e me respondeu. 2005. Eu tinha 13 anos e era coroinha da igreja do meu bairro.
Nesse dia mesmo, voltei pra casa muito curioso com a religião da minha amiga. O engraçado é que eu e essa amiga fizemos Primeira Comunhão juntos. Apesar de tudo, fui deitar com a cabeça doendo. Era uma fase de descobrimentos, mas também de confusão. Eu já sabia que era gay. Eu me sentia atraído por corpos masculinos, corpos com o mesmo sexo que o meu. Tinha medo. Deitava e rezava pra que Deus me curasse de alguma forma, me fizesse normal, acabasse com esse bate-estaca dentro da minha cabeça. A gente é ensinado que não é normal e o medo faz com que isso seja assimilado de maneira muito efetiva. Hoje eu entendo como funcionava a homofobia internalizada.
Decidi ir conhecer o terreiro que minha amiga frequentava desde pequena. Era numa sexta-feira, um dia antes de eu ir pra missa. Sentei do lado da minha amiga e ela foi me explicando tudo o que estava acontecendo lá. O cheiro da defumação, as orações, os pontos cantados, o momento em que as entidades incorporavam, o som do atabaque, tudo muito novo pra mim, catártico, de certa forma. Era uma gira de Pretos-Velhos. Me senti muito bem e quis voltar.
Uma vez, numa gira de Ciganos, um cigano me fez um patuá pra usar no pescoço. No dia seguinte, enquanto vestia minhas roupas de coroinha, o patuá pulou pra fora bem na frente do padre.
- Que coisa é essa?
Respondi que era um patuá e ele me disse pra guardar com uma cara meio feia. Tudo bem, eu não precisava que ele compreendesse.
Um tempo depois, decidi que não seria mais coroinha. Adiei essa decisão porque gostava muito dos amigos e das amigas que fiz na igreja e não queria deixá-los na mão. Deixei minhas vestes no armário da sacristia e decidi mergulhar mais fundo na minha espiritualidade.
2008. Ainda tinha medo de mim, do que iriam pensar, medo de que o amor fosse uma coisa muito distante de mim. Um dia, uma Pomba-Gira me perguntou o que eu queria pra minha vida. Eu não entendi a razão da pergunta e ela perguntou se era “homem ou mulher?”
Menti. Mulher, eu disse. Medo. Cheguei em casa, não tinha ninguém, tranquei a porta do banheiro e chorei por horas.
2015. Sou médium. 7 anos se passaram. Ainda lembro das vezes que cheguei em casa, liguei o computador e passei horas procurando sobre o que a Umbanda dizia sobre a homossexualidade, o que os Orixás tinham a dizer sobre isso. Sempre encontrei palavras de amor e de aceitação. 
Busquei conhecer minha situação politicamente. Estudei, entendi todo o medo que senti aqueles anos todos e parei de me culpar.
Dias atrás me peguei pensando na mentira que tinha contado pra Pomba-Gira que conversei naquele dia. Na última sexta, coincidentemente, houve uma gira de Exús e Pomba-Giras e decidi que precisava desabafar sobre isso.
Perguntei a uma das senhoras se eu poderia conversar com ela. Saudei sua presença e sua força e disse tudo. Falei que menti por medo e que esse medo já não existia mais, agradeci o companheirismo e todas as mensagens de amor dos Orixás e das entidades. Chorei dando um abraço apertado na Pomba-Gira que conversava comigo.
Depois de dizer tudo, ela pegou minha mão e disse que o que importa é o que está dentro do meu coração e a beleza que temos em nossas almas. Disse pra eu me manter firme e gostando de mim porque se alguém mexesse comigo, estaria mexendo com ela, e se alguém mexe com ela, aí a história já é outra.
Não há mais espaço pra medo nenhum.
Hoje, 10 anos depois de ter visto aquele livreto de pontos cantados, fica na minha cabeça o pedaço de um ponto do meu pai:

“Xangô, Kaô, meu pai, os seus filhos bambeiam mas não caem”

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

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