Ele era umas dessas pessoas que sempre parecem saber das
coisas. Uma das coisas que ele sabia é que gostava muito das pessoas... mas não
somente pessoas. Ele gostava muito das pessoas de coração quentinho. Eu sempre
perguntava o que era um coração quentinho e nunca obtive uma resposta muito
esclarecedora. Essa era uma das coisas que eu gostava nele, essa capacidade
irritante de não dizer nada e me deixar pensando sobre o que ele queria dizer.
Naquela época, eu ainda pintava. Marcelo nunca gostou muito
das minhas telas. Ele dizia que me
faltavam cores, explicações, prédios, pessoas em movimento, ruas apinhadas
dessas pessoas correndo. Eu dizia que essas coisas não se explicam, que cada um
de nós pode ver de uma forma e que explicar essas coisas seria restrigir a
experiência de alguém. Ele virava os olhos até ter certeza que eu estava
olhando, virava-os até que eu conseguisse enxergar a parte branca deles e me
dava um sorriso bobo, fácil. Eu balançava e abaixava a cabeça pra esconder como
me agradava aquele sorriso.
Marcelo era dessas pessoas que amam lápis de cor. Outra das
coisas que ele sabia era como fazer essas cores significarem tanto. Ele tinha
um jeito único de misturar todas elas, pintava pessoas com cabeças roxas,
pernas verdes, braços laranjas, tudo tinha que ser colorido e sempre me dizia
que as cores deixavam o coração quentinho. Eu sorria e ele me chamava pra
pintar junto com ele. Explicava porque cada coisa tinha que ser de cada cor,
mas era tudo muito espontâneo. “Pintei esse braço de amarelo e outro de
vermelho porque foi o que eu peguei na mão nessa hora” ou “Eu quis pintar as
pernas dela de laranja porque achei que ia ficar bem bonito, se não ficasse
tudo bem, eu arrisquei”. Eu pensava em como ele era mais corajoso que eu.
Marcelo era assim: vinte e seis anos de coragem e colorido. Pensar nele era
como imaginar um daqueles estojos enormes com canetinhas de todas as cores, ele
era todas essas cores misturadas numa só. Dos momentos em que nós pintávamos
juntos, o meu favorito era quando eu pegava algum lápis que não era do seu gosto.
Ele arrancava da minha mão, substituía por outro de seu agrado, envolvia sua
mão entre a minha e pintava comigo como se estivesse me ensinando. Eu só
acompanhava o movimento das mãos dele, desconcertado por depois de tanto anos
ainda ruborizar com essas coisas e ele sempre percebia, me chamava de besta e
me dava um beijo rápido, mas um rápido que durava um tempão na minha cabeça.
Eu gostava de abraçar e essa era mais uma das coisas que Marcelo
sabia. Ele sabia como me envolver, sabia mesmo, abraçá-lo me passava
tranquilidade, eu gostava de me sentir seguro entre aqueles dois braços. Ele
era assim, meu ponto de apoio, meu porto seguro e todas essas coisas que as
pessoas costumam dizer. Ele costumava dizer que eu era uma cidade toda, dessas pequeninas
e bonitas do interior que conseguem encantar todo mundo que chega, dizia que eu
era aconchegante desse jeito. Eu respondia que todas as ruas dessa cidade
levavam até ele, cada ruazinha, cada uma delas, até as sem saída. Ele me
abraçava forte, encostava a bochecha na minha e dizia que me amava, enquanto eu
apertava mais forte e dizia o mesmo. A gente ia dormir assim, abraçados, sentindo
o calor um do outro, o ar da respiração, aquela sensação de se sentir inteiro
Ele sabia muitas coisas e me ensinou muitas delas, até que um
dia ele precisou ir embora pra longe de mim, o motivo não importa muito.
Marcelo me mandava cartas cheias de cores, cheias dele, até que outro dia as
cartas pararam. Ele tinha parado também, dessa vez tinha ido embora daqui.
Eu fui perdendo as cores, os abraços, fui me perdendo, a
cidade que ele dizia que eu era foi ficando menos aconchegante, nada
encantadora. Lembrava dos corpos coloridos que ele pintava com tanta inocência,
lembrava de tudo, até o nada era parecido com ele. Lembrava de como ele
implicava com as minhas telas e de todas as suas atitudes que me faziam tentar
esconder o sorriso mais sincero que ele sempre conseguia me arrancar. Eu
sorria. Vai ver era isso que ele sempre quis dizer quando falava sobre as
pessoas-que-deixavam-o-coração-quentinho. Eu tenho certeza que Marcelo era a
minha. Ele era assim: vinte e seis anos de coragem, colorido e uma
pessoa-que-deixava-o-coração-quentinho.
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